O HOMEM DE BEM
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O HOMEM DE BEM

Nos bosques da praça, nas portas dos botequins rústicos ou nas salas de recreação do centro de convivência da terceira idade, contam os nossos velhinhos, remanescentes da colonização da Pedra Bonita (Itaguajé); exaltados, entusiasmados e perdidos entre risos desdentados, as proezas e acontecidos hilários, que fizeram a história desta singular cidadezinha do interior do Paraná.
Um dos causos mais pitorescos desta região é a peculiar história do mascate Sarangoni. Fato acontecido e dito verídico entre juramentos solenes feitos pelos anciãos desta praça, com o chapéu na destra e a canhota no peito.
Trata-se da mais apavorante, porém cômica aventura que um antigo morador, hoje saudoso, já teve na vida, embrenhado nas terras rochas da antiga Lupionzinho. Caso ocorrido já pra mais de setenta anos, por volta de 1928/1929.
Havia um rapagão galego, e bem italianizado. Era um solteirão malandro. Um velhaco espertalhão e aproveitador dos hospitaleiros sertanejos de nossas férteis terras paranaenses. Atendia pelo nome de Sarangoni, e em suas andanças de mascate, vendia de tudo a troco de qualquer coisa. Uma de suas proezas era vender até a mala em que levava as mercadorias, após ter esgotado o estoque de bugigangas que oferecia às donzelas caboclas.
O tal malandro de cabelo dourado, até que conquistava boas somas em suas picaretagens. Era comum vê-lo chegando ao fim do dia, já no crepúsculo avermelhado do entardecer, carregando um pequeno picuá, um bornal de pano grosso cheio de moedas, pendurado no pescoço e roçando-lhe as costas.
Não obstante a cupidez que lhe era peculiar e os volumosos resultados de suas proezas, este nosso conterrâneo era também um esbanjador inveterado. O que ganhava no dia, gastava na noite. Fosse em suas farras dos bares de balcão de madeira encardido e mal cuidado, fosse nos forrós que ora se organizava amiúde periferia afora, ou mesmo nas casas noturnas, com as damas da noite, estas ainda mais espertas que ele.
Dessa forma, não havia moeda de cobre, vintém ou patacão que desse jeito, era um gastamento sem tamanho.
Certa vez, nosso louro Sarangoni, o tal mercador ambulante, saiu em uma de suas andanças pelos arrabaldes da região para mais uma de suas jornadas por entre os sertanejos do município. Enquanto tinha mercadoria, ele avançava, atravessando quiçaças, percorrendo trilhas traiçoeiras por entre a mata fechada e se aventurando na travessia de riachos cheios de bagres como ele e brejos empestados de sapos.
Pois foi justamente nessa jornada especifica, que o Mascate Sarangoni, o audaz, não teve muita sorte em suas negociatas, tendo que se alongar mais que de costume, para enfim conseguir concretizar a venda de toda mercadoria. E para fazer “cabelo e Barba”, e concluir de fato um trabalho a contento, conseguiu vender inclusive a mala, como era praxe. Vendeu-a a um pobre coitado, que lhe pagou com meia dúzia de patacas, moedas de prata de 640 réis, ora circulantes na ocasião.
Mais que depressa, Sarangoni, o sabido, colocou as patacas em seu picuá, juntamente com as demais que já tinha ganhado antes e ligeirinho que só ele, fez menção de principiar o retorno, quando do interior do casebre, aonde vendera a mala, surgiu uma cabocla façoila com uma caneca de caldo de laranja espremida.
Acontece que há um zeloso fenômeno da natureza, em que o homem, por mais esperto que seja não é capaz de resistir ao encanto de uma dama sorridente ou à pureza singular de uma donzela moça.
E não foi pra menos, a caipira era formosa como nunca se viu. Os olhos redondos e brilhantes lhe fitavam, como se o consumisse por inteiro. Um perfume de rosas silvestres exalava de sua aura divina, enquanto os cabelos negros e volumosos requebravam-se lentamente, como num balé romântico ao toque malicioso de uma suave brisa sertaneja.
Enfeitiçado com a visão arrebatadora, o espertinho da cidade, sem mais delongas, iniciou suas conversas matreiras de conquistador barato, ainda mais porque ela, a cariboca, toda faceira, também se deixou levar pela lábia incontida daquele galego urbano.
E nesse “nhem nhem nhem” todo, as horas foram se passando. E quando Sarangoni, o conquistado se deu conta, viu que já era tarde por demais, e talvez não tivesse tempo de chegar a casa antes do anoitecer. Lamentando amargamente o ocorrido, seja por medo da onça, ou por ter que deixar a morena bonita, o fato é que o tal mascate já branco de medo, tratou logo de se por no caminho, e bem ligeirinho, com seu picuá de moedas nas costas.
Caminhando apressado no compasso do coração descompassado, Sarangoni o fujão, inventou atalhos, saltou riachos e aventurou-se sobre pinguelas, saltando cercas de arame farpado e encarando destemido, espinheiros e moitas de urtiga.
Em sua jornada desvairada, ele, o mercador ambulante desatinado, teve suas calças e camisas rasgadas. Esfolou-se todo em meio a uma dolorosa gama de arranhões e picadas de borrachudos. Todavia, apesar de sua frenética jornada e do pavor incontrolável, o mascate em fuga, que mantinha seu firme propósito de preservar seus pertences mais preciosos, quais sejam, as patacas do picuá que mantinha preso às costas, irrompia mundo afora vencendo as dolorosas peripécias do caminho. Tudo na ânsia de chegar em casa antes do anoitecer.
Mas... Qual nada...
Debalde foram seus esforços. Quando alcançou a trilha da mata, o sol já beliscava o horizonte. Com uma rapidez espantosa, os últimos lampejos do crepúsculo, vistos no céu pelas frestas das gigantescas perobas, carvalhos e ipês, dissiparam-se sem deixar vestígios. Em pouco tempo, a penumbra da boca da noite avolumou-se, em conluio com a sombra do arvoredo nativo, transformando o ambiente florestal em noite fechada, para desespero do nosso mascate, envolvido por uma crescente nuvem de pânico.
Com a escuridão, vieram os tropeços e o miado das Onças, felinos pintados, que infestavam a região naqueles tempos longínquos.
Aterrorizado e já fazendo beiço de choro, ele pedia proteção a tudo quanto era santo, inclusive santo que ainda nem existia. E quanto mais rezava, mais perto ficava o miado da onça. Aos poucos já nem era mais miado, e sim um rugido assombroso que lhe rasgava a alma petrificada na mais funesta agonia.
No meio da trilha que atravessava a selva ameaçadora, naquela fatídica noite aonde a escuridão do mais puro breu, reinava absoluta nas plagas sertanejas da cidade da pedra, Sarangoni, o polaco, enfrentava sua mais terrível provação.
E eis que surge o destino irrevogável, com suas tenebrosas artimanhas. Naquele cenário angustiante, o acontecido fato do destino, foi que um rugido aterrador que parecia tão perto de Sarangoni, o borrado, lhe causou um susto tão fabuloso, que ele, na ânsia da fuga sem tino, tropeçou nas raízes que cruzavam a trilha e tomou um tombo espalhafatoso, no negrume daquela noite nefasta.
Quando deu por si, estava de quatro, suando frio e o coração ameaçando saltar-lhe boca afora, enquanto uma sensação de morte lhe percorria as veias. E antes que tentasse se por de pé, Sarangoni, o caído, sentiu algo frio tocar-lhe as costas, por entre os rasgos da camisa já esfrangalhada.
Há, entrementes, um zeloso fenômeno da natureza, que mantém o focinho dos felinos, sempre geladinho.
Ora, o que ficou então conhecido, depois dos fatos sucedidos, foi que Sarangoni, o perseguido da noite, sentindo que a Onça predadora lhe sondava as costas com seu focinho gelado; percebeu que seus dias de negociante de panos e badulaques chegaram finalmente ao seu termo.
Paralisado pelo medo, ele mal conseguia respirar. E foi naquela incomoda posição, que ele por fim entregou-se ao destino, proferindo ali suas últimas palavras, enquanto aguardava a abocanhada fatal daquela Onça cruel.
-Come Onça, um homem de bem...
Mas como o focinho gelado da Onça, permanecia em suas costas, ele repetiu:
-Come Onça, um homem de bem...
E como a Onça, caprichosamente teimava em não lhe devorar, mantendo apenas seu focinho frio sobre suas costas geladas de medo, Sarangoni, o chorão, continuou com sua frase repetitiva. E foi assim mesmo, de quatro no chão, em meio às trevas, que ele, o tal da tez pálida, branco de susto, passou a noite inteira repetindo incansavelmente aquela pretensiosa frase...
-Come Onça, um homem de bem... Come Onça, um homem de bem... Come Onça, um homem de bem...
De manhã bem cedo, um lenhador da região que por ali passava, ao ouvir uma lamuriosa voz moribunda, procurou logo por sua origem, e sem tardança se deparou estupefato, com aquela cena hilariante.
Mais que depressa, aproximou-se do mascate agonizante dizendo:
-Que Onça coisa nenhuma, sô, levanta daí seu vagabundo. Vá trabalhar...
E em seguida deu um tremendo pontapé no traseiro do mascate Sarangoni, o prejudicado. Este se levantou com os olhos vermelhos e o semblante ainda embranquecido de pavor, para só então, e porque já era dia claro, se dar conta de fato, do fato ocorrido.
Não era focinho de Onça coisa nenhuma, mas apenas o metal frio das suas preciosas patacas que, na hora do tombo, escaparam do picuá e se espalharam por suas costas descamisada.
Dizem que depois disso, Sarangoni, o renascido, ainda que não tenha conquistado a caboclinha, de fato se tornou um homem de bem.

Nota – Adaptação livre, de narrativa popular e de autoria desconhecida.